Omar Schneider
Marcela Bruschi
Palavras-chave: Espírito Santo. Revista de Educação. História da Educação Física.
OBJETIVOS
A Revista de Educação (do Espírito Santo) (REES) foi um periódico publicado pelo Serviço de Cooperação e Extensão Cultural do Departamento de Educação do Estado do Espírito Santo, confeccionada, conforme os editores, para divulgação dos métodos contemporâneos de ensino ao professorado capixaba, entre 1934 e 1937, na cidade de Vitória. A maior parte dos artigos foram escritos por autores locais, como professores, médicos e inspetores de ensino. Para compreender esse processo de escrita, procura-se analisar a circularidade da Pedagogia Moderna no Espírito Santo, observando como foi apropriada e transformada no processo de constituição dos padrões pedagógicos na década de 1930, em terras capixabas, por atores sociais estrategicamente posicionados no campo político- educacional. Busca-se reconstituir as situações-problema com as quais se defrontaram os atores sociais empenhados em constituir uma teoria para a Educação Física nas décadas iniciais do século XX, no Espírito Santo, sejam eles professores, escritores, editores, políticos, intelectuais (civis ou militares); os repertórios de modelos culturais a que tiveram acesso; e os recursos (individuais e sociais, intelectuais e materiais) com que puderam contar na apropriação e usos (CERTEAU, 1994) que fizeram dos saberes em circulação.
A análise de um periódico possibilita uma aproximação com as peculiaridades da realidade de sua época, bem como o estudo de seus usos, de práticas que dele se apoderaram, de suas condições de produção e circulação, identificando concepções e aspectos das representações de um dado momento histórico. Os periódicos especializados, de acordo com Nóvoa (apud CATANI; BASTOS, 1997, p. ), constituem-se como “[…] o melhor meio para aprender a multiplicidade do campo educativo […]”.
Utiliza-se a imprensa periódica para analisar as representações sobre as propostas de ensino da Educação Física pelos editores da REES, na veiculação de modelos pedagógicos, na produção de estratégias editoriais de circulação de autores, de temas e prescrições educacionais nas décadas de 1930 para a Educação Física e a sua escolarização no período de intervenção do governo de João Punaro Bley.
METODOLOGIA
Qual o papel do impresso na organização da sociedade e o que significa na produção do conhecimento? Para Darnton (1996), a palavra imprensa é tratada apenas como um registro do que aconteceu e não como um dos agentes do acontecimento. Mais do que veicular informações, a imprensa ajuda a dar forma ao que por ela é registrado (DARNTON, 1996). A imprensa periódica é uma força que não deve ser desconsiderada na constituição de uma dada realidade, pois possui condições de moldar “os olhares”, uma vez que interpreta para o leitor o “acontecido”.
O impresso coloca-se na condição de intermediário da sociedade, ou seja, por meio dele, busca-se forjar a opinião pública, pois os editores consideram que “[…] o público se orienta, quase sempre decide e raciocina não pelas coisas em si, mas pela feição que lhe damos, pelos sinais que a mídia lhes atribui” (BAHIA, 1990, p. 11). Darnton (1996) afirma que a luta pelo poder é antes de tudo a luta pela opinião pública, pela adesão de uma comunidade de leitores às ideias que são tornadas públicas por um grupo de editores.
Ao propor uma nova abordagem historiográfica Nunes e Carvalho (1993, p. 44) esclarecem que “[…] ‘velhos’ objetos tornam-se […] ‘novos’, porque são apanhados numa perspectiva que realça sua materialidade de dispositivos, através dos quais bens culturais são produzidos, postos a circular e apropriados”. A metodologia amparada pela História Cultural apresenta-se como a possibilidade de “[…] uma arqueologia dos objetos […], [procurando] apanhá-los na sua forma, sua frequência, seu dispositivo [e] sua estrutura” (NUNES; CARVALHO,1993, p. 45). Projetar o objeto em termos de uma arqueologia implica tratar os documentos a serem analisados como objetos culturais que guardam as marcas de sua produção e de seus usos e que, a cada camada analisada, revela fatos relativos a seus produtores, lugares e modos de produção.
A REES[2] constitui o corpus documental desse estudo e também o seu objeto de análise, identificando os discursos que circularam no impresso que trataram da temática da Educação Física, assim como aqueles relativos à ginástica, higienismo, saúde pública, escotismo e bandeirantismo. Tais temáticas são entendidas como conteúdos potencializadores dos discursos que buscam significar a presença da Educação Física no ambiente escolar.
ATORES E EDITORES NA REVISTA DE EDUCAÇÃO: PRESCRIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA
A produção do impresso, segundo seus editores, foi destinada à divulgação dos métodos e processos contemporâneos de ensino para o professorado capixaba. Conforme Ribeiro (1934, p. 1), ela seria “[…] a Revista do professorado, pelo professor e para o professor”. Seus temas eram propostos como forma de apresentar aos leitores o movimento renovador do processo de ensino-aprendizagem, denominado de Pedagogia Moderna. Compreender esses objetivos atribuídos ao impresso se faz necessário, a fim de se entender a lógica de organização dos saberes pedagógicos que se buscava prescrever na regulação dos interesses pedagógicos dos professores e as discussões em torno da Educação Física e dos saberes que lhe davam suporte naquele momento.
Como o impresso é utilizado nesse processo? Conforme Carvalho (2001), para se compreender a história dos impressos periódicos de destinação pedagógica, existem duas possibilidades, uma que analisa a revista como uma caixa de utensílios e outra que, marcadamente, pode ser compreendida como uma biblioteca pedagógica. O impresso como caixa de utensílios prevê que o bom professor é aquele que consegue reproduzir os modelos de aulas que a revista faz circular. Conforme Carvalho (2001) este modelo se desenvolveu no Brasil em fins do século XIX até início do XX. Nesse momento considerava-se os impressos produzidos nessa perspectiva como uma marca da modernidade pedagógica. Posteriormente, no modelo da biblioteca pedagógica o bom professor é aquele que consegue operar com os conceitos e teorias que, por meio do periódico, o docente tem acesso. Essa nova investida começa a ganhar espaço a partir da segunda metade da década de 1920, para a autora, são claros os sinais de que a pedagogia como “arte de ensinar” havia esgotado sua capacidade de balizar a prática docente.
Ao manipular a série do impresso, é possível perceber que a pedagogia no Espírito Santo se encontrava em um momento de transição de saberes, momento esse que é expresso no Estado por meio das REES. Verifica-se que a revista oferece tanto uma “Pedagogia Prática”, com modelos de lições, como uma caixa de utensílios que possuía uma lógica de organização do trabalho pedagógico, como matérias que podem ser classificadas dentro da perspectiva da biblioteca, que oferecia ao professor teorias pedagógicas para a reflexão do trabalho docente, orientação considerada naquele momento mais científica, pois buscava oferecer elementos teóricos para fundamentar a prática professoral e não apenas a reprodução de práticas consideradas exemplares. Esse movimento fazia parte das mudanças no âmbito da educação, onde o modelo educacional se expressava como Escola Activa, para receber outra denominação, a Escola Nova[3]. Nesse sentido, a proposição de um dos editores ajuda a entender o embate entre essas duas representações do uso do impresso:
O professor que não fôr estudioso, que julga a sua competencia pelo diploma que tem em seu poder, está destinado ao mais clamoroso dos fracassos. E, apegado á rotina, incute, nos seus educandos, uma falsa noção de progresso e os infelicita para o complexo mecanismo da existencia, em renovação constante. E, ao contrario, o educador que busca em porfiados estudos, aperfeiçoar a sua técnica pedagogica, inspira confiança e promove, pelo seu exemplo, a prosperidade dos seus discípulos em todas as ocasiões (RIBEIRO, 1934, p. 1).
O professorado capixaba passou a ter a sua disposição, com a publicação desse periódico, o acesso a um repertório de cultura pedagógica, podendo atualizar-se e incorporar novos saberes ao seu exercício, já que o impresso lhe oferecia uma gama de modelos a serem seguidos e de discursos sobre os métodos, o que o deixava atualizado sobre o que estava ocorrendo de mais moderno no âmbito educacional.[4]
A REES é apresentada como porta-voz desse movimento, com vários artigos e temas publicados por diferentes autores. Em análise e catalogação dos temas, encontramos ao todo 61 artigos publicados referentes às temáticas que davam suporte ao ensino da Educação Física e da Pedagogia Moderna. Observa-se a diversidade de autores que possuíam os mais variados cargos e funções administrativas no cenário capixaba, recebendo somente algumas colaborações de outros Estados. Alguns autores não explicitavam sua formação ou atuação, deixando em aberto se ocupavam alguma função importante dentro do cenário capixaba, ou mesmo de outro Estado.
Nota-se que os editores também eram os próprios autores, publicando artigos para a REES, como o caso de Claudionor Ribeiro, Arnulpho Mattos e João de Bastos. Até mesmo o governador João PunaroBley publicou artigos na revista. Muitos artigos não possuíam referências de autoria. Esses artigos eram encontrados na parte final de todas as revistas, na seção de Cooperação e Extensão Cultural, levando ao entendimento de que eram também escritos pelos próprios editores das REES.
Nas REES, são várias as imagens publicadas dos editores e também de autores da revista, ou protagonistas importantes no cenário político capixaba. Fazia-se saber aos leitores quem eram, a formação e os vínculos institucionais das pessoas que organizavam a revista. Dessa forma, os artigos não eram os únicos repertórios de informações, no interior das revistas, que nos permitiam conhecer o impresso, seus atores e editores. As imagens distribuídas faziam parte das estratégias do governo para tornar seus representantes conhecidos para os professores capixabas. Assim, para compreender o projeto editorial da revista outras características do impresso devem ser analisadas como fonte, ou seja, “Há que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, […] ou de qualquer outra” (SAMARAN, 1961, p. 12 apud LE GOFF, 1990, p. 466).
Os editores da revista exerciam cargos públicos de representatividade social. Notam-se os mais diferenciados cargos: Secretário do Interior e Justiça (Fernando Duarte Rabelo, Tenente Wolmar Carneiro da Cunha, Dr. Manoel Clodoaldo Linhares, Dr. Carlos Gomes de
Sá), Inspetor Técnico do Ensino e Chefe do Serviço de Cooperação e Extensão Cultural (Claudionor Ribeiro), Diretor Interno do Departamento do Ensino Público (João Bastos), Secretário da Educação e Saúde Pública (Dr. Paulino Muller), Diretor do Departamento de Educação (Dr. Arnulpho Mattos).
Ao analisar a presença dos editores, percebe-se que eles se põem na condição de um grupo que autoriza ou não as publicações das matérias na REES, decidindo quem deveria ser conhecido e reconhecido pela comunidade de leitores como aptos a discutir as questões educacionais no cenário capixaba.
Por meio desse dispositivo, o(s) editor(es) fala(m) com os leitores, indica(m)-lhes por qual registro as matérias selecionadas deverão ser lidas, interfere(m) no que é publicado ao recortar e adicionar sentidos ao pensamento dos autores, muitas vezes distantes do que foi proposto originalmente nos textos. Enfim, nos editoriais, o(s) editor(es) se capacita(m) como voz autorizada a aproximar os vários assuntos tratados no impresso, ao mesmo tempo em que indica(m) protocolos de leituras para o que foi pelo Conselho Editorial, previamente selecionado, como digno de ser conhecido pelos leitores (SCHNEIDER; SANTOS; FERREIRA NETO, 2005, p. 7).
A REES torna-se, então, instrumento estratégico que os editores utilizaram para que fizessem valer sua voz como força autorizada para intervir nos órgãos educacionais e também como forma de reconhecimento social. Bourdier informa que “[…] as lutas pelo reconhecimento são uma dimensão fundamental da vida social” (1990, p. 35), e o que “[…] está em jogo [é] a acumulação de uma forma particular de capital” (1990, p. 36). Desse modo, o capital simbólico manifesta-se na possibilidade de “[…] ser conhecido e reconhecido [o que] também significa deter o poder de reconhecer, consagrar, dizer, com sucesso, o que merece ser conhecido e reconhecido” (BOURDIEU, 2001, p. 296). Esse reconhecimento se faz presente em discursos publicados na própria REES, ao veicularem as notas sobre a revista que eram impressas em periódicos de outros Estados.
O dr. Manoel Clodoaldo Linhares, uma das mais tradicionaes figuras da politica do Estado e uma das culturas mais brilhantes da nossa intellectualidde, veio enriquecer, com seu nome illustre, a galeria dos grandes amigos desta Revista (NOTAS, 1935, p. 92).
7Incluem-se aqui a Educação Física e os saberes que lhe davam suporte na conformação de sua escolarização.
Como se expressa o ‘O Jornal’, do Rio, […]:
‘Está sendo editada, em Victoria, esta revista, que conta com um bom corpo redacional.
O numero 12, que nos foi offerecido, traz varios artigos assignados por pessoas de grande responsabilidade em assumptos que se prendem á educação’ (NOTAS, 1935, p. 93).
A circulação da REES se faz, então, como uma estratégia de circulação de um novo padrão pedagógico para a prática do professorado e, no caso específico, de novas abordagens para o ensino da Educação Física. Porém, pode-se perceber que, mais do que veicular conhecimentos pedagógicos, a REES tenta incutir na mentalidade do leitor capixaba o sistema ideológico da época, já que seus editores também exerciam altos cargos de representatividade, juntamente com o capitão Bley, procurando instalar uma nova política no Estado. Ao adotar como referência Certeau (1994), pode-se afirmar que o impresso é utilizado como uma estratégia de imposição de novos saberes para o professorado. Os editores, ao assumirem a revista como fala autorizada, utilizaram-se dela para implantar o que consideravam a modernidade pedagógica, a fim de aumentar o seu reconhecimento e acúmulo de autoridade perante a sociedade letrada do Espírito Santo.
Com a obrigatoriedade do ensino da Educação Física em todas as classes de ensino, introduzida pela Reforma Francisco Campos, fez-se necessária a formação de professores aptos para ministrá-la. Sentindo essa necessidade, foi criado, em 1931, pelo Decreto no 1.366, de 26 de junho de 1931, no governo de João Punaro Bley, o Departamento de Educação Physica do Espírito Santo, destinado a dar orientação científica à Educação Física da mocidade escolar, resolvendo assim o “[…] problema dos mais relevantes, qual o da formação de uma raça de homens sadios e capazes de realizar as nossas aspirações de grandeza e prosperidade” (BLEY, 1935, p. 6). Conforme apresentado na REES, o Departamento de Educação Física do Espírito Santo parece ter sido uma criação do governador Bley, com sua equipe de governo:
Dois são os iniciadores, no Espirito Santo, dessa obra verdadeiramente patriotica [Departamento de Educação Física] ‘Pelo Brasil e para o Brasil unido e forte’. Refirimo-nos ao capitão Bley e ao comandante Carlos Marciano de Medeiros, cuja ação, neste sentido, tem sido energica e eficacissima (OS TRABALHOS, 1934, p. 40).
O Curso de Educação Física do Espírito Santo é considerado o primeiro curso criado no Brasil aberto à especialização para o meio civil. O Espírito Santo passou a ser percebido como uma das regiões mais avançadas em se tratando de cultura física: “Dentro em breve, não seremos mais uma raça de atrofiados e rarefeitos. Seremos sim, no Espirito Santo, um povo digno da enormidade deste Brasil feracissimo” (OS TRABALHOS, 1934, p. 40).
A formação estava representada por um triângulo que tinha como foco uma educação integral: física, moral e intelectual. Um método de educação deveria satisfazer essas exigências, e o método francês se apresentava com o maior expoente, pois correspondia às descobertas científicas mais recentes, satisfazendo as necessidades sociais e também por ter como fim o aperfeiçoamento da raça. Com a organização do Centro Militar de Educação Física, o Regulamento de 1932 estabelece o Método Francês para orientar o ensino da Educação Física em todo o país.
Na REES, a inserção da Educação Física no ambiente escolar é atribuída à função de formar o homem de ação, sadio física e intelectualmente, incutindo valores e responsabilidades, pois o ideal de homem que se quer firmar a partir de então depende do desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito. Esse é o momento em que a Educação Física passa a ter considerações mais importantes no campo educacional, pois a ela é atribuída uma maior importância para a construção da ideia de nacionalidade. A Educação Física, nessa reforma educacional, é introduzida como um meio capaz de incutir a higiene, eugenizar e moralizar o homem, estando intimamente ligada à Educação Sanitária. A Educação Física também é apontada como capaz de obter um melhor desenvolvimento intelectual:
Formar corpos sãos e robustos, ao mesmo tempo que desenvolver as faculdades cerebraes, eis o seu objecto.
Para conseguir o equilibriophysiologico e psychologico, a educação deve desde o inicio procurar desenvolver paraléla e racionalmente o cerebro e o corpo, confirmando assim o velho adagio: MENS SANA IN CORPORE SANO. A educação physica, deve pois, marchar ao par da educação intellectual. E’ necessario que o corpo seja são e sadio para executar as ordens partidas do cerebro (MIRANDA, 1935, p. 10).
Por solicitação de Bley, são enviados para Vitória os tenentes Carlos Marciano de Medeiros, Horácio Cândido Gonçalves e Wolmar Carneiro da Cunha, oriundos do Centro Militar de Educação Física do Distrito Federal, para criar, organizar e administrar o Departamento de Educação Física do Espírito Santo. A Educação Física passou a suprir as necessidades voltadas para a saúde, o fortalecimento da raça e, consequentemente, a formação de um povo nacionalista e patriótico:
[…] é necessario que o brasileiro cuide da cultura de seu corpo, ostentando-se bello e sadio, ao sol dos tropicos em holocausto á belleza, mostrando-o ás gerações vindouras como uma estatua de belleza e força.
E chegaremos assim á perfeição racial.
O Brasil contemplará a belleza de seus filhos ao desfilar o pelotão dos athletas. – Homens talhados para a pureza das linhas, homens plasmados para a grandeza dos tempos (NOGUEIRA, 1934, p. 28).
À Educação Física estava associada aos cursos de Educação Sanitária Escolar e aos dispositivos denominados Serviço Médico Escolar, Bandeirantismo e Escotismo, entendidos como práticas essenciais na formação do professorado capixaba, aptos para uma nova prática pedagógica, reconhecida como moderna. No interior da REES, são publicados artigos de professores formados no próprio Departamento de Educação Physica do Espírito Santo, ou que estabeleciam ligação em torno dessas discussões, como Carlos Marciano de Medeiros, diretor do próprio Departamento de Educação Physica, de médicos higienistas, como Mario Bossois, e também de pessoas que exerciam cargos de representatividade no cenário capixaba, no período de intervenção do capitão João Punaro Bley. A prática da higienização era considerada como uma ideologia de controle do indivíduo, tanto no seu aspecto biológico, quanto no seu aspecto social. Para os higienistas, os exercícios físicos deveriam desenvolver a formação e a conservação do corpo saudável, além do melhoramento étnico.
‘De que modo pode o exercício físico tonificar a fibra moral?
Cultivando a presteza, a decisão, a atitude, a iniciativa, a adaptabilidade, a confiança em si mesmo, o bom humor e uma limpeza de pensamento refletida numa limpeza do corpo’ (PURINTON, apud FREITAS, 1934, p. 10).
8É interessante informar que João PunaroBley teve toda a sua formação militarista.
A criação do Serviço Médico Escolar e do Curso de Educadoras Sanitárias criado pelo Decreto n° 4.012, em 22 de agosto de 1933, evidencia as preocupações com a garantia da saúde. A importância dessas organizações se faz presente em discurso proferido por Arthur Meireles, pediatra e médico escolar:
[… ] será nas escolas – centros formadores da futura nacionalidade – que ela começará logo a destribuir a sua farta mésse de beneficios, higienizando o meio escolar, dosando exercícios fisicos e o trabalho intelectual de acôrdo com as possibilidades e o desenvolvimento de cada um, afastando provisoria ou definitivamente os portadores de doenças infecciosas para a profilaxia do meio escolar, dando aos probesinhos [sic] o desvelo de uma assistencia medica e dentaria gratuita e continua, ditando diretrizes, despertando energias, [… ] e criando no espirito da cada aluno o valor da consciência sanitaria […] (MEIRELES, 1934, p. 3).
Busca-se, por meio das escolas, disseminar uma maior consciência a respeito da saúde. As primeiras instruções são observadas já no ensino primário – denominado de Puericultura – do qual as crianças deveriam sair com as primeiras noções básicas de higiene. Deveriam levar essas informações para seus lares, ultrapassando os muros das escolas. A Educação Sanitária, desde o primário, corrigiria as imperfeições e os vícios que as crianças pudessem ter. Os alunos deveriam adquirir as primeiras noções sobre doenças contagiosas, o que os tornariam conhecedores dos meios para transmitir e eliminar os agravos à saúde.
O ensino da Educação Sanitária mantinha relação com a Educação Física. A Educação Sanitária, no ambiente escolar, ensinaria aos alunos a importância da prática da Educação Física, pois esse saber poderia manter o corpo forte e saudável, livre de qualquer doença, atendendo aos anseios do governo de fortalecimento da raça.
Outra iniciativa discutida na REES para a educação capixaba que veio ao encontro das aspirações do Serviço Médico Escolar e da Educação Sanitária foram as colônias de férias – organização complementar à escola. De acordo com Ribeiro (1936), essas colônias foram destinadas a restituir as energias perdidas durante todo o ano letivo e oferecer completa Educação Sanitária.
Dois mezes de ar puro, alimentação sadia e em horas certas, educação sanitaria, exercicios recreativos, ambiente familiar, moralidade, etc., bastarão, forçosamente, para devolver aos centros urbanos, sêres em formação, em outras condições de saúde. E com que prazer os interessados revêm as creanças que se vão depauperadas, anemicas, nervosas e retornam refeitas, coradas e estampando alegria de viver? (RIBEIRO, 1936, p. 13).
Além disso, as colônias de férias tinham, como finalidade, revigorar a raça, a formação de caráter e de sentimentos sublimes (RIBEIRO, 1936). Essa organização contava ainda com um corpo de educadores: médicos, educadoras sanitárias e educadores físicos (professores de Educação Física).
Os autores e editores da REES apresentam também outras práticas que visavam ao desenvolvimento de um projeto de uma educação integral. Os Movimentos Escotismo e Bandeirantismo são bastante enfatizados na Revista e são apresentados como prática social capaz de desenvolver o caráter e o corpo. O Escotismo já vinha sendo adotado em algumas escolas brasileiras como complemento para o que denominavam de educação integral. Sua proposta é o desenvolvimento do jovem, favorecendo a formação de valores morais, físicos e intelectuais, um exemplo de responsabilidade, de respeito e de disciplina. O Bandeirantismo tinha a mesma finalidade e organização do Escotismo só que era direcionado às moças.
Relacionavam a figura do brasileiro com o Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato em 1918, um homem com aversão ao trabalho e acometido por doenças parasitárias, traços que eram associados ao restante do povo, sobretudo à população rural, assolada “[…] pela doença, decorrente da falta de saneamento, de nutrição e de instrução, mas também fruto do descaso dos governantes” (SCHNEIDER, 2010). Um sistema educacional que tinha por finalidade um desenvolvimento baseado na tríade do físico-moral-intelectual buscava resolver esses males, sendo de grande interesse o ensino da Educação Física nos estabelecimentos escolares e de professores aptos a ministrarem essa disciplina.
O ‘Jeca’, que aprendeu a soletrar letra redonda e conhece as quatro operações fundamentaes da arithmetica, é um candidato a emprego publico. Sáe na boléa de um caminhão, amaldiçoando a gleba natal, odiando a clássica enxada que cavou a sepultura do pae opilado, e vem para a cidade aggravar o problema social (LIMA, apud FREITAS, 1937, p. 7).
Pelo que se pode perceber, a REES deve ser considerada como uma peça estratégica de intervenção instalada no governo Bley, servindo também de veículo de propaganda dos feitos do novo governo. A criação do Departamento de Educação Física, o Serviço de Inspeção Médica e Educação Sanitária Escolar, o Bandeirantismo e o Escotismo escolar faziam parte das iniciativas do governo a fim de instaurar a modernidade pedagógica no Espírito Santo, produzindo uma escola nova para um homem novo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel dos editores deve ser colocado em evidência na construção de uma História Cultural dos saberes escolares, já que eles selecionam os temas que devem ser publicizados para o leitor. Os editores buscaram, assim, uma forma de reconhecimento, ao assumirem um lugar de autoridade com voz autorizada para falar dos novos princípios da educação, acumulando o capital simbólico, tão almejado por eles. Aptos a trazer essa discussão no contexto do Espírito Santo, modernizam seu sistema de ensino, o que inclui as novas perspectivas em torno da Educação Física.
Para Carvalho (2001, p. 138), “[…] determinar as estratégias políticas, pedagógicas e editoriais que produziram e fizeram circular um impresso é condição necessária, mas não suficiente, para dar conta dos seus usos”. Ainda há muito o que se discutir no campo editorial na constituição de uma nova cultura pedagógica e na conformação da Educação Física como disciplina escolar, “[…] uma vez que ele [o editor] não ocupa a linha de frente, mas posiciona- se nos bastidores, articulando, censurando e tomando decisões sobre o que ou a quem dar maior evidência e quais temáticas devem ser privilegiadas ao ser projetada a edição de um periódico” (SCHNEIDER; SANTOS; FERREIRA NETO, 2005, p. 9). Entender um objeto em sua materialidade implica ainda direcionar o olhar para as práticas e para os seus usos.
Como a REES foi criada para divulgação dos modernos métodos contemporâneos de ensino ao professorado capixaba, a Educação Física era apresentada como indispensável no processo de formação dos alunos. Ela era significada nas escolas capixabas, fazendo parte de um projeto sanitário, de desenvolvimento físico e intelectual, da disciplina, da moral e do caráter, além da saúde e higiene. Nesse momento, ao brasileiro eram associados alguns traços negativos, que o representavam como melancólico, com perversões sexuais, com horror à responsabilidade, o que dificultava o desenvolvimento da Nação. Acreditavam ser possível, por meio da educação, modificar essas representações. Para tanto, há um grande investimento na Educação Física e na Educação Sanitária. A leitura desse movimento evidencia a estreita ligação entre educação e saúde numa ênfase cada vez maior à Educação Física para o fortalecimento da raça. Essa foi uma das justificativas para a criação do Departamento de Educação Física. Para os editores, um dos objetivos do periódico era educar e modernizar a cultura do Espírito Santo. Assim, na tríade do desenvolvimento moral-físico-intelectual, acreditavam estar a fórmula da potencialização das capacidades humanas, desenvolvidas por meio da Educação Física/ginástica nas escolas capixabas.
REFERÊNCIAS
BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: as técnicas do jornalismo. São Paulo: Editora Ática, 1990.
BLEY, João Punaro. Ensino publico. Revista de Educação, Vitória, ano 2, n. 14, p. 5-10, maio 1935.
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BOURDIEU, Pierre. Meditaçõespascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A caixa de utensílios e a biblioteca: pedagogia e práticas de leitura. In: VIDAL, Diana Golçalves; HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. Tópicas em história da educação. São Paulo: Edusp, 2001. p. 137-167.
CERTEAU, Michel. Fazer com: usos e táticas. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
DARNTON, Robert. Introdução. In: DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (Org). Revolução impressa: a imprensa na França – 1775-1800. São Paulo: Edusp, 1996. p. 15-17.
FREITAS, Napoleão de. A educação física como fonte de moral (1). Revista de Educação, Vitória, ano 1, n. 2, p. 10-13, maio 1934.
FREITAS, O. Rodrigues. A política da ruralização. Revista de Educação, Vitória, ano 4, n. 30 e 31, p. 6-8, jun./jul. 1937.
GINZBURG, Carlo. Relações de força:história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
MEIRELES, Arthur. O serviço medico escolar em face da educação e da saude. Revista de Educação, Vitória, ano 1, n. 2, p. 2-7, maio 1934.
MIRANDA, Adyr. Ligeiras apreciações sobre a educação physica da mulher. Revista de Educação, Vitória, ano 2, n. 12, p. 10-15, mar. 1935.
NOGUEIRA, Maria Apparecida. A educação physica como factor de progresso. Revista de Educação, Vitória, ano 1, n. 9, p. 16-28, dez. 1934.
NOTAS e informações. Revista de Educação, Vitória, ano 2, n. 14, p. 92-93, maio 1935.
NÓVOA, Antônio. A imprensa de educação e ensino. In: CATANI, Denice Bárbara; BASTOS, Maria Helena Câmara (Org.). Educação em revista: a impressa periódica e a história da educação. São Paulo: Escrituras, 1997. p.11-31.
NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da educação e fontes. Cadernos da ANPED, Belo Horizonte, n. 5, p. 7-64, set. 1993.
OS TRABALHOS de fim de curso da inspetoria de educação física. Revista de Educação, Vitória, ano 1, n. 2, p. 40-41, maio 1934.
RIBEIRO, Claudionor. Aos professores. Revista de Educação, Vitória, ano 1, n. 2, p. 1, maio 1934.
RIBEIRO, Mario Bossois. As colonias de férias e o serviço medico escolar no Espírito Santo. Revista de Educação, Vitória, ano. 3, n. 25-26-27-28, p. 13-19, set./out./ nov./ dez. 1936.
SCHNEIDER, O.;SANTOS, Wagner dos; FERREIRA NETO, Amarílio. Autores, atores e editores: os periódicos como dispositivos de conformação do campo científico/pedagógico da educação física. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIA DO ESPORTE E I CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 14. 2005, Porto Alegre. Educação física e ciências do esporte: ciências para a vida. Porto Alegre: Colégio Brasileiro de Ciencias do Esporte, 2005. v. 1.
SCHNEIDER, Omar. Educação physica: a arqueologia de um impresso. Vitória: Edufes, 2010.
3É preciso, como salienta Ginzburg (2002, p. 114), ampliar “[…] a atenção do produto literário final para as fases preparatórias, para investigar a interação recíproca, no interior do processo de pesquisa, dos dados empíricos com os vínculos narrativos […]. Podemos comparar essas narrativas a instâncias mediadoras entre questões e fontes, as quais influem profundamente (ainda que não de maneira exclusiva) sobre os modos pelos quais os dados históricos são recolhidos, eliminados, interpretados – e, por fim, naturalmente, narrados”.
[2]Até o momento foram localizadas 27 revistas (01, 02, 03, 06, 07-08, 09, publicados no ano de 1934. Os números 10-11, 12, 13, 14, 15-16, 17-18-19, lançados no ano de 1935. Os impressos de número 22, 23-24, 2526-27-28, editados no ano de 1936, e as REES de número 29, 30-31 distribuídas no ano de 1937, que se encontram distribuídas em diferentes acervos da grande Vitória).
[3]De acordo com Carvalho (2001), a Escola Activa se caracterizava por um sistema de ensino prático, entendida como “artes de ensinar”, decorrente de uma política de formação docente centrada no favorecimento da observação para a boa imitação de modelos. Já a Escola Nova se caracterizava por oferecer fundamentos, subsidiando a prática docente com um repertório de saberes autorizados pelas teorias pedagógicas que os impressos faziam circular.
[4]A REES possuía como leitores principais os professores capixabas.
Trabalho originalmente publicado em: SCHNEIDER, Omar; Bruschi, Marcela. A Revista de Educação e a escolarização da educação física no Espírito Santo: autores, atores e editores (1934-1937) In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação, 2013, Cuiabá. Circuitos e fronteiras da história da educação no Brasil. 2013. 1 CD-ROM ISSN:2236-1855